Quando eu comecei a escrever em jornal, há 17 anos (santo Deus...), fiz um juramento de que nunca começaria um artigo com a célebre frase: "Estou diante da página branca, em busca de um assunto..." E cumpri a promessa, querido leitor. Jamais fiz isso. Mas, hoje, não sou eu quem está sem assunto, é o Brasil. Parece não acontecer mais nada no país. Como se explica isso?
Bem, é que Lula é o único acontecimento. Ele se apropria do que acontece e interpreta-o em seu interesse. Pode transformar acontecimentos em não-acontecimentos e vice-versa. Pode transformar o nada em fato e o fato em nada. Com seu carisma e marketing constante, joga uma nuvem de poeira nos olhos do país. Ele entendeu que basta apoderar-se dos defeitos e cacoetes políticos do Brasil e saber manobrá-los para tudo marchar com "normalidade". Apesar de crises de fait divers, nunca o Brasil pareceu tão normal.
Com a economia bombando, como ele teve a sensatez de manter a boa política econômica do governo anterior, basta a Lula manter a imagem do funcionamento político normal, aceitando as anormalidades como normais, aceitando vícios dos poderes como fatos inevitáveis e, sabe ele, nem tão danosos à sua administração. Lula fatura como seus todos os acertos do governo anterior e jogará seus erros nos ombros de quem vier depois, disse uma vez Dora Kramer.
O que me dói neste governo é o que ele poderia estar fazendo com a imensa grana que entrou com esta bonança e com as alianças que teceu. Mas grandes mudanças e reformas essenciais dariam muito trabalho, desgastes, e Lula não quer aporrinhação. Ele conseguiu ficar fora de todos os escândalos que os babacas bolchevistas aprontaram. Saiu limpo e mais branco ainda, com o Omo da impunidade.
Sejamos justos: Lula merece elogios. Ele tem sido sensato, aqui e na América Latina, quer fazer algo pelo Brasil, sim, trouxe o conceito de fome e pobreza para a agenda administrativa e tem sido democrático. Mas este artigo trata mais de sua genialidade política. Aí, sim. Trata-se de um maquiavel espontâneo, forjado na luta dura da viagem entre as classes sociais.
Ele aparece todos os santos dias na TV, rádio e jornais, pois descobriu o Brasil real e — aí está seu gênio — descobriu algo que ninguém viu antes: que o Brasil não precisa de governo, basta parecer que tem. Ele entendeu que não existe uma meta a priori, desistiu de qualquer idéia de atingir uma síntese. Esta é a grande dificuldade de se analisar seu governo.
Os comentaristas típicos partem de uma premissa de progresso no futuro e esperam que ela seja cumprida na prática. Mas nós não conseguimos concluir nada. Afinal, é bom ou ruim? Ninguém tem certeza. Lula não trabalha com isso. Acha isso uma bobagem "modernista". Seu projeto é ele mesmo. Ele deixa o Brasil andar sozinho e não mexe no essencial. Ele raciocina intuitivamente caso a caso, sem grandes projetos totalizantes.
Lula adotou como atitude o sentido da "cordialidade" que Sergio Buarque de Holanda descreveu. Como a classe dominante do Nordeste, da qual ele foi a vítima, Lula usa o jeitinho do "homem cordial" para si mesmo. "Aos amigos aliados, tudo"; tolerância até com os macarrões de um Severino para governar em paz. Ele sabe que tudo se esquece. Quanto à lei e a questões institucionais, ele não liga muito. Não fere a lei, mas tolera que seus sórdidos aliados o façam, como se dissesse: "É o Brasil, que que se vai fazer?" E atenção, inimigos meus, vou dizer uma frase polêmica: talvez só essa velha cordialidade ibérica nos preserve uma louca e tropical "democracia". Lula usa isso.
Lula desmoralizou os escândalos, tolerando-os. Ele não é malandro nem desonesto, mas tem sensibilidade para o que o Brasil quer ver. Este é o outro tema deste artigo: Lula como ator. Sim. Até hoje só foi enfrentado por outro gênio do palco: Roberto Jefferson, que até lhe fez o favor de livrá-lo dos bolchevistas psicopatas que o impediam de governar. Agora, só tem tarefeiros e pelegos na boquinha, mas que não fazem tanto mal quanto os "dirceuzistas", que nos jogariam na vala da Argentina.
O Lula-ator tem o selo de legitimidade de sua vida de operário. Tudo bem. E ele passa habilmente a "sabedoria" que o sofrimento lhe deu, a paciência diante das crises: "Calma, pequenos-burgueses!... Eu sei o que é a vida, já passei por coisa pior!" Lula desqualifica qualquer seriedade dramática com brincadeiras populares, como o Corinthians, o dedo cortado, o Brasil comparado ao Sítio do Picapau Amarelo, o mar salgado de xixi. Mas, se precisar, ele fala sério com a bruta indignação do sindicalista vítima do "sistema", assim como pode ser tranqüilo e debonaire na reunião da Febraban ou sereno com reis e duques.
É um craque. Só vi o Lula perder o prumo no auge do mensalão, quando temeu por si. Ali, suas sobrancelhas se arquearam de verdade, e seus olhos giraram para cima, nas órbitas. Ali, ele teve medo mesmo de ser jogado de volta ao passado de pobreza e marginalidade. Já na campanha da reeleição, com a subida do Alckmim, ele arregaçou as mangas, mandou fazer um palanque de passarela como o do Mick Jagger e botou para quebrar. Era um leão acuado que ganhou de goleada.
Essa multiplicidade de cores, cambiantes, velozes como as lulas, é sua maior munição. Quando se zanga, dá medo. Quando ri, é uma graça — suas covinhas são irresistíveis, nos acalmam, nos desmobilizam; suas piadas, mesmo sem graça, tiram a tragicidade de crises. Isso tudo sem falar no seu "design" perfeito: barriguinha, um getúlio barbadinho, simpaticíssimo, o nome de fácil legibilidade como "Pelé"... em suma, um crack. E tem mais: o país é tão "imexível", tão duro de roer, tão resistente a qualquer cirurgia ou reforma, que talvez Lula tenha razão em sua tática de ciência política...
Bem, é que Lula é o único acontecimento. Ele se apropria do que acontece e interpreta-o em seu interesse. Pode transformar acontecimentos em não-acontecimentos e vice-versa. Pode transformar o nada em fato e o fato em nada. Com seu carisma e marketing constante, joga uma nuvem de poeira nos olhos do país. Ele entendeu que basta apoderar-se dos defeitos e cacoetes políticos do Brasil e saber manobrá-los para tudo marchar com "normalidade". Apesar de crises de fait divers, nunca o Brasil pareceu tão normal.
Com a economia bombando, como ele teve a sensatez de manter a boa política econômica do governo anterior, basta a Lula manter a imagem do funcionamento político normal, aceitando as anormalidades como normais, aceitando vícios dos poderes como fatos inevitáveis e, sabe ele, nem tão danosos à sua administração. Lula fatura como seus todos os acertos do governo anterior e jogará seus erros nos ombros de quem vier depois, disse uma vez Dora Kramer.
O que me dói neste governo é o que ele poderia estar fazendo com a imensa grana que entrou com esta bonança e com as alianças que teceu. Mas grandes mudanças e reformas essenciais dariam muito trabalho, desgastes, e Lula não quer aporrinhação. Ele conseguiu ficar fora de todos os escândalos que os babacas bolchevistas aprontaram. Saiu limpo e mais branco ainda, com o Omo da impunidade.
Sejamos justos: Lula merece elogios. Ele tem sido sensato, aqui e na América Latina, quer fazer algo pelo Brasil, sim, trouxe o conceito de fome e pobreza para a agenda administrativa e tem sido democrático. Mas este artigo trata mais de sua genialidade política. Aí, sim. Trata-se de um maquiavel espontâneo, forjado na luta dura da viagem entre as classes sociais.
Ele aparece todos os santos dias na TV, rádio e jornais, pois descobriu o Brasil real e — aí está seu gênio — descobriu algo que ninguém viu antes: que o Brasil não precisa de governo, basta parecer que tem. Ele entendeu que não existe uma meta a priori, desistiu de qualquer idéia de atingir uma síntese. Esta é a grande dificuldade de se analisar seu governo.
Os comentaristas típicos partem de uma premissa de progresso no futuro e esperam que ela seja cumprida na prática. Mas nós não conseguimos concluir nada. Afinal, é bom ou ruim? Ninguém tem certeza. Lula não trabalha com isso. Acha isso uma bobagem "modernista". Seu projeto é ele mesmo. Ele deixa o Brasil andar sozinho e não mexe no essencial. Ele raciocina intuitivamente caso a caso, sem grandes projetos totalizantes.
Lula adotou como atitude o sentido da "cordialidade" que Sergio Buarque de Holanda descreveu. Como a classe dominante do Nordeste, da qual ele foi a vítima, Lula usa o jeitinho do "homem cordial" para si mesmo. "Aos amigos aliados, tudo"; tolerância até com os macarrões de um Severino para governar em paz. Ele sabe que tudo se esquece. Quanto à lei e a questões institucionais, ele não liga muito. Não fere a lei, mas tolera que seus sórdidos aliados o façam, como se dissesse: "É o Brasil, que que se vai fazer?" E atenção, inimigos meus, vou dizer uma frase polêmica: talvez só essa velha cordialidade ibérica nos preserve uma louca e tropical "democracia". Lula usa isso.
Lula desmoralizou os escândalos, tolerando-os. Ele não é malandro nem desonesto, mas tem sensibilidade para o que o Brasil quer ver. Este é o outro tema deste artigo: Lula como ator. Sim. Até hoje só foi enfrentado por outro gênio do palco: Roberto Jefferson, que até lhe fez o favor de livrá-lo dos bolchevistas psicopatas que o impediam de governar. Agora, só tem tarefeiros e pelegos na boquinha, mas que não fazem tanto mal quanto os "dirceuzistas", que nos jogariam na vala da Argentina.
O Lula-ator tem o selo de legitimidade de sua vida de operário. Tudo bem. E ele passa habilmente a "sabedoria" que o sofrimento lhe deu, a paciência diante das crises: "Calma, pequenos-burgueses!... Eu sei o que é a vida, já passei por coisa pior!" Lula desqualifica qualquer seriedade dramática com brincadeiras populares, como o Corinthians, o dedo cortado, o Brasil comparado ao Sítio do Picapau Amarelo, o mar salgado de xixi. Mas, se precisar, ele fala sério com a bruta indignação do sindicalista vítima do "sistema", assim como pode ser tranqüilo e debonaire na reunião da Febraban ou sereno com reis e duques.
É um craque. Só vi o Lula perder o prumo no auge do mensalão, quando temeu por si. Ali, suas sobrancelhas se arquearam de verdade, e seus olhos giraram para cima, nas órbitas. Ali, ele teve medo mesmo de ser jogado de volta ao passado de pobreza e marginalidade. Já na campanha da reeleição, com a subida do Alckmim, ele arregaçou as mangas, mandou fazer um palanque de passarela como o do Mick Jagger e botou para quebrar. Era um leão acuado que ganhou de goleada.
Essa multiplicidade de cores, cambiantes, velozes como as lulas, é sua maior munição. Quando se zanga, dá medo. Quando ri, é uma graça — suas covinhas são irresistíveis, nos acalmam, nos desmobilizam; suas piadas, mesmo sem graça, tiram a tragicidade de crises. Isso tudo sem falar no seu "design" perfeito: barriguinha, um getúlio barbadinho, simpaticíssimo, o nome de fácil legibilidade como "Pelé"... em suma, um crack. E tem mais: o país é tão "imexível", tão duro de roer, tão resistente a qualquer cirurgia ou reforma, que talvez Lula tenha razão em sua tática de ciência política...
Arnaldo Jabor
(Transcrito de O Globo de 16/9/2009)
(Transcrito de O Globo de 16/9/2009)
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